sábado, 16 de outubro de 2010

Mais um dia

   Hoje o espelho está claramente contra mim. Aquele tipo no reflexo não sou eu, tenho a certeza. Ainda que vestido com as minhas roupas e imitando os meus gestos, aquele não sou eu. Por isso afasto-me e acendo um cigarro, visto o sobretudo e bato a porta da rua atrás de mim. 
   As ruas arredondam-se à minha frente, deformadas pelas lâmpadas amarelas que espreitam nas esquinas. Se me sentisse triste, tenho a certeza que as pedras velhas dos edifícios me pareceriam amigos com quem há muito não se fala. Se estivesse feliz... Se estivesse feliz, apaixonado ou glorioso, as ruas seriam marcha de vitória contra os meus pés ou outra treta qualquer desse género. Mas não me sinto nada disto. Nem poético, nem sábio, nem senhor de nada. Hoje sou só um gajo qualquer a fumar um cigarro amassado enquanto conta os trocos que leva no bolso. 
   Entro na tasca do costume e peço sopa e uma bifana. Por cima do balcão lê-se "Vá entrando. Vá pedindo. Vá pagando. Vá saindo. Nesta casa não se fia." Quando acabo de comer peço para meter na conta, que o mês vai mal. É a tasca do costume e e aos do costume sempre se deixa que quebrem as regras. Outro cigarro na boca e um maço vazio no lixo. Que horas serão? Não me serviria de nada sabê-lo. Hoje já trabalhei, já cumpri o meu dever social, de maneira que caguei para as horas que possam ser. 
   Devia ir para casa. Vou para o café. O do costume, claro. É um dia do costume numa vida desacostumada do conforto e escondo-me nos velhos hábitos. A mesa do canto, café e uma cerveja. Enquanto o empregado não vem, vou à máquina e compro tabaco. Mais um cigarro. Rio-me por dentro da minha figura ali no canto, de sobretudo preto, a chávena vazia e a cerveja a esvaziar. Um pouco ridícula, esta solidão. Não importa. Daqui a pouco chegará alguém, um qualquer conhecido, talvez uma pedra antiga. Sentar-se-á na minha mesa e perguntará o que faço hoje. Irei rir-me, porque a resposta é a de sempre: "O costume."
   Talvez assim, quando chegar a casa, o espelho faça as pazes comigo e me devolva o meu reflexo.
  

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Hibernação

Debaixo dos lençóis, debaixo da colcha, enrosco-me como um animal muito velho que não quer acreditar que acabou o tempo de hibernar. Nunca ouvi dizer que tal tenha alguma vez sucedido, mas tenho a certeza que acontece. Na vidraça junto à cama não bate chuva nenhuma: está sol lá fora. Está um tempo errado para lá das cortinas, porque devia estar a chover e não está.
O telefone toca na mesa-de-cabeceira e eu finjo não ouvir. Toca uma e outra vez e ainda outra. Atendo.
"Sim?"
"Olá..."
Ela fica à espera de uma resposta que não dou. Então prossegue.
"Estou de volta à cidade... Queres combinar um café?"
"Não."
Desligo. Lá fora continua a não chover e assim não dá, assim é impossível um homem, por mais só que esteja, por mais derrotado que se sinta, deixar-se abraçar pelo conforto cinzento do vazio. Levanto-me, por fim. Vou até à casa-de-banho, abro a água do duche. Penso que, se voltasse para a cama, este som talvez me iludisse e eu conseguisse sentir pena de mim mesmo. Mas em vez disso enfio-me debaixo da água que queima na minha pele, que açoita a carne cansada e sinto-me num outro abraço que não aquele outro em tons de cinza que procurava nas almofadas.
Depois de me vestir, quando estou para sair de casa, algo me leva a pegar no telefone e a discar rapidamente um número. Ela atende.
"Desculpa, há pouco quando ligaste tinha acabado de acordar e esqueci-me de te dizer uma coisa..."
Quase a consigo ver a sorrir do outro lado, enquanto diz:
"Tudo bem. O que é que me querias dizer?"
"Vai à merda."
Desligo. Saio de casa. Afinal o sol está absolutamente de acordo comigo.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Gato-Preto-Noite

Hoje, o meu gato acordou-me, com os olhos faiscando no meio do abismo de pêlo que se fundia no escuro da noite, apenas para me dizer

- Vou-me embora.

E, como se o que se passara fosse algo de casual, começou a lamber a pata, lavando o seu corpo de azeviche.

- Vais embora?

Ele olhou-me, com uma expressão grave. Chegou-se mais perto, com o cuidado de não a acordar a ela, que dormia profundamente a meu lado, e esfregou a sua cabeça no meu rosto. Peguei nele e fitei-o com atenção.

- Chegou a hora?, perguntei.

- Chegou, meu amigo.

Levantei-me, com ele enroscado no meu colo, ronronando.

- Para onde vais?

- Tu sabes.

- E ela?

- Ela fica. É aqui que ela pertence.

Abri-lhe a porta.

- Não queres comer algo antes de ir?

- Não é preciso.

Ficámos em silêncio por uns instantes.

- Adeus.

- Adeus.

Ele começou a deslizar rua fora. Quando ia quase a desaparecer na esquina, indecifrável da cortina nocturna, chamei-o e perguntei mais uma vez

- Para onde vais?

Ele parou e, não fosse pelas suas feições felinas, seria capaz de jurar que sorriu antes de me responder

- Para outro sonho.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Where the President is never black, female or gay...

Portanto, Morrissey finalmente pode acreditar na América.

sábado, 2 de agosto de 2008

Coma

Adormeci ou acordei, para o caso tanto faz. Meti férias de mim para me poder encontrar. Descobri-me ao virar da esquina, um pouco mais risonho e com o futuro nas mãos, como coisa leve de se lhe pegar.
Demos as mãos e descemos a rua; lá em baixo corria o rio e fizemos um barco e ensinaste-me a navegar.

sábado, 24 de maio de 2008

Vergiess alles was Ich Dir sagte

Há filmes que marcam. Esquece Tudo O Que Te Disse foi um filme que me marcou e tive agora a oportunidade de colocar as minhas mãos numa magnífica edição em DVD, que além de, entre os seus Extras, nos presentear com Respirar (Debaixo de Água), a premiada curta-metragem de António Ferreira, realizador do filme, traz também as bandas sonoras de ambos os filmes que, verdade seja dita, são uma delícia. O prazer de rever este filme português (bem que se podem ignorar os preconceitos nacionais adjacentes a esta expressão) foi apenas atenuado pela noção - que se apagara um pouco da memória - que possui algumas partes mais fracas a nível de diálogo e de representação. Felizmente, são momentos esporádicos, que não impedem de fruir de uma das melhores obras da sétima arte feitas por cá, na minha modesta opinião. Digo isto porque Esquece Tudo O Que Te Disse, sem ser um filme de cariz mainstream, também não entra por caminhos obscuros, desses que tanto se descobre no chamado cinema de autor.
Vale a pena ver e rever, nem que seja para lembrar que o cinema em Portugal não é só Manoel de Oliveira ou O Crime do Padre Amaro...

Azembla's Quartet - Esquece Tudo O Que Te Disse (videoclip)


Trailer

domingo, 18 de maio de 2008

A Carta Que Não Te Escrevi

Não te poderia nunca escrever esta carta. É por isso que não lhe conheces a existência. É que esta carta é tudo o que deves saber e tudo o que jamais poderás conhecer. Estas palavras são abstractas. São a verdade que deve ser enterrada como mentira vergonhosa. Por isso, se um dia, já velha e cansada, leres por acaso o que agora te digo, finge que nunca foram para ti, mas aceita-as como sendo, já que pertencem a quem lhes tocar com o olhar.
Devo confessar-te que no nosso adeus usaste palavras que nunca deveriam ser usadas. Devo confessar que soaram como munições num pelotão de fuzilamento e que, acima de tudo, a morte antecipada que me proporcionaste nada alterou. As mesmas palavras que ansiei dizer no dia em que te conheci; em cada vez que te olhei; em cada instante que pensei em ti, continuam sendo as mesmas.
Bem sei que enterraste ou desejas enterrar cada um dos sorrisos que trocámos, cada vez que os nossos olhares tiveram diálogos que nenhuma língua pode descrever, cada jura de eternidade, cada roçar das nossas peles, cada momento em que acreditaste que havia mais no mundo que o próprio mundo. Não sou um qualquer Cristo, para praticar ressurreições. Sou um mero animal de mãos rasgadas, com o corpo rasgado, deixando a água escorrer. Sou um mero animal que acreditou nas tuas carícias.
Queria perdoar-te. Não posso. É-me impossível perdoar os teus gestos e a tua esconjura, tanto pelo facto de terem ferido este búfalo imenso que habita em mim, como por me ser impossível guardar qualquer raiva contra ti e, portanto, nada ter para te perdoar.
Entende, por favor, que estas palavras não se destinam a ninguém e que, ainda assim, as dirijo apenas a ti. São apenas a minha forma, quase infantil, de te dizer: este mundo não te fechou as portas, apenas apagou a luz que esperava por ti, à noite, iluminando o alpendre. Se chegares ao patamar e chamares pelo meu nome, não farei mais do que dar-te as chaves para esta casa; essas chaves que sempre foram tuas.