domingo, 18 de maio de 2008

A Carta Que Não Te Escrevi

Não te poderia nunca escrever esta carta. É por isso que não lhe conheces a existência. É que esta carta é tudo o que deves saber e tudo o que jamais poderás conhecer. Estas palavras são abstractas. São a verdade que deve ser enterrada como mentira vergonhosa. Por isso, se um dia, já velha e cansada, leres por acaso o que agora te digo, finge que nunca foram para ti, mas aceita-as como sendo, já que pertencem a quem lhes tocar com o olhar.
Devo confessar-te que no nosso adeus usaste palavras que nunca deveriam ser usadas. Devo confessar que soaram como munições num pelotão de fuzilamento e que, acima de tudo, a morte antecipada que me proporcionaste nada alterou. As mesmas palavras que ansiei dizer no dia em que te conheci; em cada vez que te olhei; em cada instante que pensei em ti, continuam sendo as mesmas.
Bem sei que enterraste ou desejas enterrar cada um dos sorrisos que trocámos, cada vez que os nossos olhares tiveram diálogos que nenhuma língua pode descrever, cada jura de eternidade, cada roçar das nossas peles, cada momento em que acreditaste que havia mais no mundo que o próprio mundo. Não sou um qualquer Cristo, para praticar ressurreições. Sou um mero animal de mãos rasgadas, com o corpo rasgado, deixando a água escorrer. Sou um mero animal que acreditou nas tuas carícias.
Queria perdoar-te. Não posso. É-me impossível perdoar os teus gestos e a tua esconjura, tanto pelo facto de terem ferido este búfalo imenso que habita em mim, como por me ser impossível guardar qualquer raiva contra ti e, portanto, nada ter para te perdoar.
Entende, por favor, que estas palavras não se destinam a ninguém e que, ainda assim, as dirijo apenas a ti. São apenas a minha forma, quase infantil, de te dizer: este mundo não te fechou as portas, apenas apagou a luz que esperava por ti, à noite, iluminando o alpendre. Se chegares ao patamar e chamares pelo meu nome, não farei mais do que dar-te as chaves para esta casa; essas chaves que sempre foram tuas.

3 comentários:

Anónimo disse...

eis uma tinta rara de encontrar para se poder escrever, eis cartas raras de se ler...

Rita Mendes disse...

Lindo. Estou sem palavras.
Os meus parabéns

Igor disse...

cassamia:
há cartas que nunca deveriam ter de ser escritas. deveriam ser ainda mais raras...

rith@:
olá, obrigado pelo comentário. eu pelos vistos tinha palavras, embora não devessem ser ditas...