quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Parvónia

A nova publicidade da Media Markt ofende os meus ideais e também pessoas próximas. Não me refiro à questão do escuteiro, que já teve direito a uma petição. Mas espreitem aqui, que está lá tudo.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Só $15.000?!!!












Mr. jazzy_blues

WANTED FOR THE INTENSE FRENCH-KISSING OF A RUSSIAN TEDDY BEAR

$15.000



quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A Cave

Foi quando pousaste a mão no meu rosto. Alisaste as rugas cansadas do fogo dos alambiques e do labirinto das retortas. Sorriste, como não me recordava de te ver sorrir. Tentei endireitar-me e descobri que não era possível: os anos que passei fechado neste laboratório de improviso acumularam-se em camadas até formar uma corcunda. Quis sorrir-te, mas os lábios estavam presos de tão crispados e saiu-me uma estranha expressão, incompreensível. Não para ti, claro. Agradeceste-me a tentativa de sorriso pousando teus lábios nos meus. Estavas mais nova, subitamente. Não eras mais a mulher cinzenta que descia à cave para me trazer o almoço. Estavas de novo brilhante, o cabelo mais leve do que o ar e o vestido rodando em redor do teu corpo, como que impedido pelo medo de conspurcar a tua pele.
"Já descobriste?", julguei ouvir-te murmurar.
"É impossível... Quanto mais pesquiso mais me convenço de que a resposta não está aqui."
Tocaste-me no ombro. Julguei ter adormecido sem dar conta, porque quando me virei já não estavas lá. Julguei ter adormecido porque a velhice prega destas partidas.
Levantei-me a custo, o corpo separando-se da cadeira, tentando recordar-se qual a sua forma independentemente dela. Arrastei os pés, devagar. Ao primeiro passo, um ataque de tosse que quase me derrubou. Envenenamento por mercúrio, dizem os médicos. Mas mantive o equilíbrio, a custo, dirigindo-me às escadas. Demorei talvez uma hora para subir os degraus, entre ataques de tosse e ataques de asma.
Quando, por fim, cheguei ao corredor, chamei por ti. Três vezes: a primeira soou como um ronco inaudível; a segunda um grito ridículo, com a voz falhando, como se a mudança de voz da puberdade me revisitasse; a terceira, por fim, poderosa, vibrante e, contudo, carinhosa. Não escutei a tua resposta. Vagueei pela casa, ansioso de reencontrar o teu cabelo esvoaçante, o teu vestido de ondas e teus lábios de cereja desenhando um sorriso no teu rosto de menina.
No chão da cozinha, junto ao tabuleiro com o almoço derramado, jazia sem vida o corpo cinzento de uma mulher.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Se eu morrer hoje

Se eu hoje morrer, é só mais um dia. Vais lavar o teu rosto pela manhã e traçar o contorno dos teus olhos a preto, não por eu ter morrido, mas porque sempre tiveste os olhos contornados a preto. Não será luto, o teu acordar. Será um espreguiçar de ontem, indiferente ao facto de que o meu rosto frio hoje não sentiu a luz.

É certo que irás rir durante a manhã. É igualmente certo que à hora de almoço atenderás uma chamada dizendo "Ele morreu." Talvez te estrague a tarde. Sim, creio que sem dúvida te estragará a tarde em que tinhas planeado rir num café, falando de mim e de como ontem te fiz rir. Tinhas planeado tudo isto, sem querer, porque hoje é só mais um dia. Sinto-me culpado por antecipação.

O contorno preto dos teus olhos vai-te deslizar pela face. Vais pensar "Devia ter-lhe dito. Devia ter-lhe dado aquele abraço e aquele beijo, porque agora não me recordo qual foi o último abraço nem o sabor do seu último beijo."

Vais pensar "E agora?" Não gosto que vás pensar nisso, porque para mim então já não haverá nenhum "agora". Se eu morrer hoje, é só mais um dia. Talvez me enterres mais rápido que o coveiro. Ou talvez procures outros braços em que me enterrar, já podre a carne mas persistente a memória.

Se eu morresse hoje... Queria bombos e uma gaita de foles e champanhe para todos. Queria todas as tuas fotografias no meu caixão, que deveria ser vermelho. Queria ainda um livro e uma folha com palavras tuas, com o teu perfume.

Não morro hoje. É cedo.

Tenho um livro para escrever e a tua alma para salvar. Talvez falhe em ambos, mas não sem tentar. Se eu não morrer hoje, talvez o dia seja diferente.

Génese

Tive a particularidade de passar as manhãs da minha infância numa biblioteca municipal, enfiada num velho convento convertido em edifício dos Paços do Concelho, onde a minha mãe era funcionária. Assim, enquanto a minha mãe trabalhava no andar de cima e eu esperava pelas aulas da tarde, lia os livros que enchiam as prateleiras do andar de baixo, nem sempre para a minha idade.
Lia banda desenhada, policiais, aventuras... Sabia onde estava cada livro, melhor que as bibliotecárias, e passava parte desse tempo a colocar no devido lugar aqueles que alguém pusera na estante errada.
Desde os cinco anos que queria poder contar as histórias que me assaltavam o espírito, mais propenso a sonhos que a trepar árvores. Então escrevia histórias de dez, vinte páginas, geralmente violentas e assustadoras. Os meus pais preocupavam-se com a ideia de que o seu primogénito pudesse ter inclinações violentas. Estavam enganados.
O que me interessava era o poder de brincar com as personagens, de as conduzir, de me realizar nelas. Depois, a capacidade de divertir quem lia, de os entreter e, por fim, de lhes proporcionar uma experiência mais ou menos gratificante.
Hoje, digo: 'Sou escritor.' E há quem ria. Sou escritor porque, primeiro que tudo, sou um leitor que escreve o que gostaria de ler. Sou leitor porque sou um escritor que lê o que gostaria de pôr por escrito.
Sou escritor, acima de tudo, porque em criança boa parte dos meus amigos eram páginas encadernadas, que me deram a conhecer o mundo que vive dentro de nós e que, a bem dizer, talvez não seja menos real do que este em que nos movemos.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Já não há mais histórias

Deixaram-me sem histórias. É verdade. Procurei debaixo do sofá, dentro dos livros e até levantei o tapete (e isto é estúpido, porque todos sabem que uma história não cabe debaixo do tapete). Nem uma. No bolso só tinha um lenço de papel amarrotado e felizmente ainda por usar. Histórias, nem uma.

Foi um golpe baixo, esse de me deixar sem histórias. Tentei escrever a minha vida, mas apercebi-me que também não tinha história. Era assim como que um imenso disparate, ou melhor, uma imensidade de disparates muito bem colados.

"Para onde raio foram as histórias?", quis saber, com o punho cerrado batendo no balcão dos Ministros.

"Ah, bem sabe, já ninguém quer saber de histórias, já ninguém acredita..."

"Que lhes fizeram, então?!"

"Promulgámos uma lei a dizer que não há mais histórias. Lamento, nada a fazer."

Nada a fazer, portanto. Vou dedicar-me à colagens.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Cronologias

Dizem que ser lembrado é a chave para a imortalidade.

Para se destruir o imortal, a chave é então o esquecimento?

. . .


(o dia que passou é inalterável.)

recorda-te de amanhã

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Natália Correia no país do Salazar

Hoje, enquanto tomava a bica no Café do Arsénio (uma tasca em frente à Sé Velha de Coimbra), apercebi-me dum poema de Natália Correia colado a uma parede, que já há muito me lembro de ver ali, mas que jamais me dera ao trabalho de ler.


Foi-me preciso descobrir que:

a lógica é a ciência de gerir os rendimentos da estupidez;
os políticos não são inteiramente galinhas porque cacarejam e não põem ovos;
as pastas dos executivos levam dentro aranhas para urdirem as teias que nos imobilizam;
os militantes de todos os partidos têm pele de camisas enforcadas;
a família é um cardume de piranhas ao redor da carcaça de uma vaca sagrada;
a sociologia é uma completa falta de humor perante a decadência;
os gestores destilam um suor frio que nos constipa;
as nações içam as bandeiras para porem o falo a pino e masturbarem-se;
as esquerdas e as direitas resultam do pacto de não inverterem os papéis;
o socialismo é um estratagema para negar aos exploradores o direito ao desaparecimento;
o liberalismo é uma manha do Estado para forjar algemas com a liberdade;
os intelectuais são uma chatice com que o Criador não contava;
sendo a educação a providência dos imbecis que são em maior número, o mundo está
imbecilizado pela educação;
o sistema é a creche da debilidade mental e a vala comum da inteligência;
a economia é adquirir-se o vício do fumo porque se comprou um isqueiro;
dos vencidos não reza a história porque se renderam à razão,

para concluir que:

chegou a hora romântica dos deuses nos pedirem a desobediência.
Faço-lhes a vontade.
A partir de hoje, se alguém me quiser encontrar, procure-me entre ­o riso e a paixão.

Natália Correia - 10 de Janeiro de 1983



Apercebi-me então que fazem hoje 25 anos sobre a escrita deste poema. A Poeta Natália Correia deixou-nos há quase quinze anos (que se completam a 16 de Março) e o país (perdoem a minúscula) continua na mesma. As críticas continuam actuais. A lógica é a mesma; os políticos e os executivos também.
Mas que se poderia esperar, quando os deuses nos pedem desobediência e escolhemos para nos representar como maior de entre nós o chicote e a mão de ferro do Sr. Salazar? Pelos vistos precisamos de mais do que Natália para que possamos tirar as mesmas conclusões...



P.S.: Relativamente ao uso da palavra "Poeta" ao invés de "Poetisa", trata-se da única coisa que determinada professora universitária (profundamente feminista e conservadoramente avant-garde) conseguiu meter-me na cabeça... É que as "Poetisas" eram antes da emancipação da mulher; era quando as mulheres escreviam poemas fechadas no seu quarto, muito doentes e recatadas. É, aliás, um termo com o seu quê de pejorativo. Por essa razão, porque a Arte Poética não merece ser subdividida, utilizo o substantivo "Poeta" seja para quem for.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Ruínas

Quando chegámos à cidade, já esta estava em ruínas. Do cimo da colina, parados na estrada poeirenta com a minha mão enlaçando a tua, podíamos observar o fumo negro que subia das casas desfeitas.
'Quando foi?', perguntaste.
'Penso que dormíamos.'
Ficámos em silêncio, contemplando. Puxaste-me até um rochedo e sentámo-nos, difusos na bizarra mistura das cinzas e da luz do sol que surgia então no horizonte. Beijei-te o rosto e tu os meus lábios. Fizemos amor: duas silhuetas em contraste com a luz dos incêndios. Quando terminámos, deixámo-nos nus, deitados na pedra. Eu olhava os teus seios, erguendo-se contra a luz.
'Esta noite sonhei que incendiava a cidade.'
'Sim, bem sei. Eu também.'
Enlacei a tua cintura, as nossas peles confortáveis no contacto.
'Morreram todos?'
'Sem dúvida.'
Olhaste-me. Em contra-luz, não conseguia ver os teus olhos. Mas sentia-lhes o brilho amargo.
'É aqui que nos separamos.', disseste.
'Por um sonho?'
'O teu sonho. Levaste-me nele. Vê o que aconteceu.'
Virei o rosto para o céu. Não te vi ergueres-te. Não vi enquanto cobrias o teu corpo ondulante com a prisão da tua roupa. Ouvi apenas o teu balbuciar 'Adeus...' O som dos teus passos perdeu-se por entre as nuvens e a cinza.
Quando me ergui, era já noite e estava só, abandonado ao meu sonho. No vale, uma cidade em ruínas.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Cara Metade

Dói-me o peito. Tu sabes.
Espero uma resposta. Não vem. Espero um pouco mais. Já foi. Mas era outro o caminho e eu não vi e não fui.

É assim como se fosse a morte a bater à janela e eu a fingir que não estou em casa. É um pouco como isso, só que não sei como isso é. Sei, contudo, que me recorda uma tal situação. Porque quando julgo que é uma corda que trazes na mão, de laço já feito, digo-te: "Vou ali e já venho."

Bem sei que dantes (quando foi?) não era assim (dizes que foi ontem, eu digo que foi noutra era).
Mas tinham-me então crescido os dentes e tinham fome. Pediram o mundo e eu não sabia que mundo lhes dar. Pensei: havia um restaurante naquela rua. E esqueci-me do néctar que tinhas para mim.

Quando os dentes se foram (mas a fome ficou), já o teu néctar secara (ou fechaste a fonte?).

Por isso hoje, mesmo não sendo nada disso por não saber o que isso é, sou um homem com dores no peito, gemendo de fome e fingindo não ver a morte que bate, insistente, à janela.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Canto Para Minha Morte - Raul Seixas

Uma extraordinária música de Raúl seixas, o pai do rock brasileiro...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Despertar

Foi ontem, um pouco antes de adormeceres. Eu, como é óbvio, já dormia. Puxaste novamente a colcha sobre o teu corpo. Eu deixei, mas revirei-me na cama e agarrei-me a ti. Estava a dormir, bem sabes, e a cama era estreita. Afastaste o teu rosto do meu, incapaz de suportar o bafo alcoolizado da nossa discussão que, sorrateiro, me escapava ainda dos lábios entreabertos. Eu sei que dormia: penso que o sabes também. Porém no afastar do teu rosto, saiu-me uma palavra por entre o bafo. Era o teu nome. Esperaste um pouco, imóvel, na escuridão.
"O que foi?"
Não respondi. É preciso que entendas: estava a dormir. Como poderia eu responder? Agora que estou acordado, sei qual era a resposta. Era simples. Deveria tê-la dito ontem, quando afastaste o teu rosto do meu. Mas dormia, bem sabes.
Quando acordei e te abracei e te falei da noite que terminara por fim e tentei livrar-me do meu horrível hálito, tu nada disseste sobre o que sucedera durante o meu sono. Olhaste-me e nada mais. Fizemos amor triste e sem vontade. O teu corpo pouco se moveu. Eu quis chorar e achei-me patético. Deitei-me no teu seio; a tua mão no meu cabelo.
E respondi-te, por fim.