segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Gato-Preto-Noite

Hoje, o meu gato acordou-me, com os olhos faiscando no meio do abismo de pêlo que se fundia no escuro da noite, apenas para me dizer

- Vou-me embora.

E, como se o que se passara fosse algo de casual, começou a lamber a pata, lavando o seu corpo de azeviche.

- Vais embora?

Ele olhou-me, com uma expressão grave. Chegou-se mais perto, com o cuidado de não a acordar a ela, que dormia profundamente a meu lado, e esfregou a sua cabeça no meu rosto. Peguei nele e fitei-o com atenção.

- Chegou a hora?, perguntei.

- Chegou, meu amigo.

Levantei-me, com ele enroscado no meu colo, ronronando.

- Para onde vais?

- Tu sabes.

- E ela?

- Ela fica. É aqui que ela pertence.

Abri-lhe a porta.

- Não queres comer algo antes de ir?

- Não é preciso.

Ficámos em silêncio por uns instantes.

- Adeus.

- Adeus.

Ele começou a deslizar rua fora. Quando ia quase a desaparecer na esquina, indecifrável da cortina nocturna, chamei-o e perguntei mais uma vez

- Para onde vais?

Ele parou e, não fosse pelas suas feições felinas, seria capaz de jurar que sorriu antes de me responder

- Para outro sonho.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Where the President is never black, female or gay...

Portanto, Morrissey finalmente pode acreditar na América.

sábado, 2 de agosto de 2008

Coma

Adormeci ou acordei, para o caso tanto faz. Meti férias de mim para me poder encontrar. Descobri-me ao virar da esquina, um pouco mais risonho e com o futuro nas mãos, como coisa leve de se lhe pegar.
Demos as mãos e descemos a rua; lá em baixo corria o rio e fizemos um barco e ensinaste-me a navegar.

sábado, 24 de maio de 2008

Vergiess alles was Ich Dir sagte

Há filmes que marcam. Esquece Tudo O Que Te Disse foi um filme que me marcou e tive agora a oportunidade de colocar as minhas mãos numa magnífica edição em DVD, que além de, entre os seus Extras, nos presentear com Respirar (Debaixo de Água), a premiada curta-metragem de António Ferreira, realizador do filme, traz também as bandas sonoras de ambos os filmes que, verdade seja dita, são uma delícia. O prazer de rever este filme português (bem que se podem ignorar os preconceitos nacionais adjacentes a esta expressão) foi apenas atenuado pela noção - que se apagara um pouco da memória - que possui algumas partes mais fracas a nível de diálogo e de representação. Felizmente, são momentos esporádicos, que não impedem de fruir de uma das melhores obras da sétima arte feitas por cá, na minha modesta opinião. Digo isto porque Esquece Tudo O Que Te Disse, sem ser um filme de cariz mainstream, também não entra por caminhos obscuros, desses que tanto se descobre no chamado cinema de autor.
Vale a pena ver e rever, nem que seja para lembrar que o cinema em Portugal não é só Manoel de Oliveira ou O Crime do Padre Amaro...

Azembla's Quartet - Esquece Tudo O Que Te Disse (videoclip)


Trailer

domingo, 18 de maio de 2008

A Carta Que Não Te Escrevi

Não te poderia nunca escrever esta carta. É por isso que não lhe conheces a existência. É que esta carta é tudo o que deves saber e tudo o que jamais poderás conhecer. Estas palavras são abstractas. São a verdade que deve ser enterrada como mentira vergonhosa. Por isso, se um dia, já velha e cansada, leres por acaso o que agora te digo, finge que nunca foram para ti, mas aceita-as como sendo, já que pertencem a quem lhes tocar com o olhar.
Devo confessar-te que no nosso adeus usaste palavras que nunca deveriam ser usadas. Devo confessar que soaram como munições num pelotão de fuzilamento e que, acima de tudo, a morte antecipada que me proporcionaste nada alterou. As mesmas palavras que ansiei dizer no dia em que te conheci; em cada vez que te olhei; em cada instante que pensei em ti, continuam sendo as mesmas.
Bem sei que enterraste ou desejas enterrar cada um dos sorrisos que trocámos, cada vez que os nossos olhares tiveram diálogos que nenhuma língua pode descrever, cada jura de eternidade, cada roçar das nossas peles, cada momento em que acreditaste que havia mais no mundo que o próprio mundo. Não sou um qualquer Cristo, para praticar ressurreições. Sou um mero animal de mãos rasgadas, com o corpo rasgado, deixando a água escorrer. Sou um mero animal que acreditou nas tuas carícias.
Queria perdoar-te. Não posso. É-me impossível perdoar os teus gestos e a tua esconjura, tanto pelo facto de terem ferido este búfalo imenso que habita em mim, como por me ser impossível guardar qualquer raiva contra ti e, portanto, nada ter para te perdoar.
Entende, por favor, que estas palavras não se destinam a ninguém e que, ainda assim, as dirijo apenas a ti. São apenas a minha forma, quase infantil, de te dizer: este mundo não te fechou as portas, apenas apagou a luz que esperava por ti, à noite, iluminando o alpendre. Se chegares ao patamar e chamares pelo meu nome, não farei mais do que dar-te as chaves para esta casa; essas chaves que sempre foram tuas.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Porcelana

Ele não a conhecia. Não sabia quem ela era. Não lhe vira a máscara sob a máscara que ela tão gentilmente lhe servira. Sem dúvida poderemos perguntar se ele se apaixonou por uma máscara, tão passageira como o dia de Carnaval. Mas perguntar tal seria não saber que homem era ele.
"É possível aceitar uma máscara e amar não a porcelana decorada a negros traços, mas os breves momentos em que ela se ergue.", dizia ele, quando lhe pediam que explicasse.
Em boa verdade sabemos que ele próprio experimentara tantas máscaras que descobrira que um homem não é nem o que julga ser, nem quem julgam que é: o homem é uma soma de quem quer ser com a subtracção do que não conseguiu atingir.
Era por isso talvez que ele, mais do que o toque macio da porcelana, amava as pequenas rachas que, aqui e ali, despontavam no falso rosto, tão liso.
Ele não a conhecia, mas estava disposto a ver o tombar da máscara, a beijar a cicatriz que a obrigara a tal adereço.
A dor do rosto fendido nunca lhe permitiu a ela descobrir-se e quando sentiu não poder mais suportar o peso do seu disfarce, refugiou-se no deserto onde sabia que ele jamais a iria encontrar.
Ela nunca soube por quantos anos ele a procurou, mas soube um dia da sua morte. Traçada na campa, uma só frase:
"Supus em ti todas as cicatrizes e assim vim a estar aqui, reproduzindo-as em mim para serem parte de mim como o são de ti."
Ela nunca soube que ele conhecia como era frágil a porcelana.

Carta ao Homem que temia ser Feliz

Eu sei que dói ser feliz. Dói descobrir o preço da felicidade. Dói porque, quando a felicidade se ausenta, fica o nada e o abismo fere. E tu que não conhecias o amor, tu que não conhecias o sonho, de súbito sentes a invasão do teu lar cor de cinza, desse conforto que nos traz a inércia de nada ter.
E esqueces e queres esquecer o traço mágico do teu sorriso que se rasgava sempre que não sentias o peso abrupto de te fazer falta algo sem cor, forma, cheiro ou preço no mercado. E esqueces - e é tão triste - o estranho prazer de sentir.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Sonho

Sonhei que não encontrava a tua foto. Bem sei que é disparate, que nada significa. Também sei onde tenho todas as tuas fotos e ainda assim... Consegues entender? Esta noite, dormindo, não encontrava a tua fotografia e foi o pânico que me tomou.
E, quando acordei e fitei meus olhos no teu sorriso imóvel que sempre me recebe ao despertar, estava incerto sobre o que era sonho afinal.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

O Prisioneiro Louco

E então estou louco, dizem-me. Estou insano, absolutamente insano e incapaz de agir dentro da arena da normalidade. Pior ainda, dizem-me que além de louco estou dependente. Que não me consigo libertar, que estou preso, terrivelmente confinado a não ser uma criatura livre, dessas que não necessitam de ninguém por perto. Estou acorrentado aos outros, assim mo dizem.
...
Graças a Deus!

Recuso a liberdade se for solidão e a normalidade se for para produzir lã branca.

domingo, 13 de abril de 2008

Às vezes, sou um ser muito pequenino, muito fraco e complexado. Faço das tripas coração para meter um pé fora da cama, nessas alturas em que, transformado num ser patético e ridículo, desejaria não ter os olhos do mundo inteiro desdenhando da minha capacidade de me erguer. Quando isso sucede, eu encolho e cai-me o cabelo e murmuro nomes de doenças com voz débil, a ver se os olhos têm pena de mim e me deixam ficar na cama.
E se deixam, se por ventura consigo que me não julguem pela decisão de não me erguer, então esquecem-me ali e não surge nem uma mão a conduzir uma colher de sopa até aos meus lábios secos e quebradiços. Ninguém me alimenta e tenho de me disfarçar com forças que não tenho e erguer-me da cama e vir para a rua de sorriso nos lábios.

(e eu às vezes tantas vezes só queria ficar deitado como um moribundo a quem todos pagam respeitos mas sem sofrer sem mais sofrimento do que esse que me constringe a decidir ficar no leito e meu amor preciso que entendas que por vezes toda a minha força desmorona e me aceites assim tão forte como fraco nessas vezes por vezes tantas vezes mas nem sempre)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O Beijo

O nosso beijo foi ruidoso.
O primeiro sinal foi o casal da mesa ao lado. Voltou-se e mirou-nos com surpresa, como se a nossa ousadia fosse pura loucura. Logo a seguir, todos no café nos fitaram, irados. O velho que tragava o vinho ao balcão, por entre arrotos e umas asneiras, cuspiu para o chão em sinal de protesto.
Na rua, os transeuntes pararam, estupefactos, tomados de medo. Uma criança chorou e a mãe tapou-lhe os ouvidos, procurando a fonte de tamanho distúrbio. Dois carros bateram. Os condutores discutiram de quem era a culpa, mas a sua raiva era contra nós e não entre eles.
A TV ligou-se como que por magia e falavam comentadores e jornalistas. Praguejavam contra o mundo, atiravam culpas como ovos podres.
Os nossos lábios separaram-se num sorriso meigo e o mundo inteiro retomou o seu rumo: o velho pediu mais um copo; a criança deu a mão à mãe; os condutores trocaram contactos e seguradoras; alguém tirou o som à televisão. O mundo prosseguiu, mas o arrepio do nosso beijo ficou para sempre gravado na sua espinha.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O Enxoval das Bruxas

Chamavam-lhe "o enxoval das bruxas", a essas alturas em que chove apesar do sol radiante. Macário sempre se interrogara do porquê. Hoje, à porta da tasca, com um cigarro entre os dentes e um copo de vinho na mão, recordava-se da sua infância. Não se tratavam de reminiscências isoladas, mas de toda uma sensação que lhe vinha à memória e que estava certo de ser o que sentem as crianças.
'O enxoval das bruxas...', balbuciou.
E recordou, imiscuída nesse sentimento, a imaginação infantil que despertava com tais palavras: um desfile de bruxas dançando, segurando o véu negro da que seguia na frente, com um ramo de flores silvestres já murchas. Macário via agora essas imagens diante de si, tal e qual como quando tinha cinco, seis, sete anos...
Alguém dentro da taberna rosnou, chamando por ele, exigindo ser servido. A chuva interrompeu-se, as bruxas sumiram. Macário apagou o cigarro, verteu o resto do vinho goela abaixo e, com passadas de homem, regressou para trás do balcão.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Passeio

Fui dar uma volta. Fui comprar tabaco. Fui ver se estava a chover. Fui.
Não chovia e o tabaco sabia como os primeiros cigarros que fumei, intenso e o sabor pleno de tonalidades. O frio que na véspera me consumira tinha desvanecido. Sentado na esplanada de um café, pousei o casaco noutra cadeira e fiquei a pensar. Não pensei como era curioso nunca me ter sentado naquele café, naquela rua em que passo todos os dias. Não pensei nas guerras, nas fomes, nos presidentes e ministros que governam como crianças mijando sobre carreiros de formigas. Não.
Pensei com os sentidos. Pensei com a pele que me descrevia o toque morno do sol e o afagar da brisa ali, junto ao rio, que os ouvidos me narravam: o deslizar sereno das águas e as gaivotas que os olhos viam descer para pousar sobre o manto azul. Pensei com os lábios e a língua a carne irmã que os explorava, que os beijava. Sorvi o cheiro dessa mulher e adivinhei-lhe as formas.
Levantei-me por fim. Deixei lá o casaco, meio por vontade, meio por esquecimento. Se o for procurar agora, não o encontrarei. Não havia café, nem rio, nem tabaco. Fui, apenas.
E, com um sorriso, rodo agora a chave de casa enquanto seguro a sua cintura com a outra mão.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Conversas

Falámos de comboios, falámos de estações. Falámos do horror da partida e da confusão da chegada. Falámos de muitas coisas. Eu disse-te a minha honestidade e temi que dizê-la a tornasse mentira a teus olhos, esses olhos perante os quais não quero falhar. Tu disseste quem eu sou e estavas só a falar de ti.
Falámos das ruas, as palmilhadas e todas aquelas por percorrer. Falámos de existir; falámos de pensar; falámos do ódio dos homens e do riso das crianças. Falámos de gatos e falámos de cães. Falámos de deuses e negámos demónios, subitamente apagados dos seus lares de fogo. Eu disse-te os meus medos e como os afogo. Tu nada disseste, porque bastaria um também.
Falámos de não crer e crer outra vez. Falámos de nós como portas abertas dando para quartos há muito conhecidos. Eu disse-te o teu rosto; tu sorriste no meu. Já não falávamos no fim e nos nossos olhares habitavam todas as conversas do mundo.
Falámos de tanta coisa e há tanta por falar. Perguntamo-nos como iniciar tantas conversas, como principiar esse tempo em que sou tu e tu serás eu. A resposta é então clara: começa assim...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Complexo de Fénix

Eu deveria estar morto, bem sei. O golpe foi certeiro e correu sangue. Muito sangue. A autópsia revelou claramente: estava morto e bem morto, tão morto como todos os vivos hão de estar.
O velório foi rápido e os poucos presentes choraram um pouco, como fica bem nestas coisas. Também houve presenças indesejadas, como é normal. Uma ou outra pessoa, que me pergunto se terão ido por remorso, consideração, ou mesmo para verificar apenas até que ponto era real a minha morte. Sem pulso nem respiração e com uns fiapos de algodão a espreitar por entre os lábios roxos. Sim, podiam estar descansados, eu estava morto.
O problema, claro está, foi o enterro. O coveiro, coitado, roía uma maçã encostado à enxada com que me abrira o sepulcro. A família mantinha-se em silêncio, no luto arrogante dos seus fatos pretos, com os olhos nada inchados escondidos por detrás dos óculos escuros. A minha irmã tremia o lábio no seu choro compulsivo, com os olhos arregalados postados no caixão que chegava em solene procissão, como se de facto a minha morte fosse mais importante por ir numa caixa de madeira envernizada. Minha mãe não chorava, por estar seca. Também ela fitava o caixão.
Então pousaram-me, para que não descesse aos vermes sem meia dúzia de preces do padre. E eu morto, muito morto, observando os meus homicidas carpindo como crocodilos. Lembro-me que, mesmo sem vida, pensei: isso dos crocodilos chorarem quando comem as vítimas é um mito, isso é coisa de gente.
E levantei-me. Sacudi o terno azul, desbotado pelo sol. Foi motivo de grande espanto, um morto tão morto, já aberto e já cosido, erguer-se assim tão jovial. Sorri um pouco e acenei a todos, até aos crocodilos. Tirei o casaco e desarranjei a camisa. Cheguei-me a uma morta de passagem e fiz-lhe uma vénia, perguntando:
- Se fosses ave, qual gostarias de ser?

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Vingança

Pode uma traição inventada ferir tanto como uma real? Mesmo depois de revelada a sua falsidade?


Eu não sou cruel. Mas quando me ferem, é o mesmo que irritar um ninho de abelhas... O facto de eu ser meigo e carinhoso leva as pessoas a descuidar o facto de que sou orgulhoso e inteligente. Acontece que então me torno mau. Deixo-me possuir por uma maldade requintada, retorcida. A vingança é algo terrível, mas principalmente para quem é vítima dela. Porque não há piedade para a vítima de uma vingança. São vítimas aqueles que uma vez foram culpados.


Entenda-se: não sou vingativo. Acredito no perdão. Mas e quando não querem ser perdoados? Quando erram e teimam, do alto da sua arrogância, que não têm remorsos? Então eu sou outro. E esse outro, lamento dizê-lo, é a própria Vingança... Todos os meus valores se perdem: torno-me capaz de mentir, de ferir, de tirar gozo do sofrimento alheio. Nunca o faço sem uma lição, claro. É preciso educar os espíritos reles. Não sou eu quem o diz. Eu não creio em nada disto. É o outro. Ele é capaz de semear sementes de destruição ao longo de dias, meses ou anos e uni-los todos num instante, como uma enorme armadilha. Ele é cruel.


Ele só conhece dois princípios: "Olho por olho, dente por dente" e "Quem semeia ventos colhe tempestades". É o que basta para o temer. Não podia ter melhor aliado.

O Intruso

E então ela foi-se. Há muito que discutíamos sobre o intruso que, a pretexto de suposta amizade, se instalara naquele cantinho da casa. Eu aborrecia-me porque ele lhe olhava as pernas, lhe gabava o peito. Aborrecia-me o lixo que ele espalhava pelo chão e que eu tinha de recolher, em silêncio, para evitar novas discussões. Ela fez dele bicho de estimação e passava-lhe a mão atrás das orelhas. Isto incomodava-me, como é óbvio. Ele entrara na casa prometendo não incomodar, prometendo não tocar nela, não olhar para ela.
Mas os dias passaram e eu dei por mim sentado no sofá, sozinho, enquanto eles brincavam pela casa. Eu dirigi-me a ela e pedi-lhe que entendesse que ele prometera ficar apenas no cantinho daquela casa. Ela pediu-me confiança. Discutimos. Eu aceitei.
No dia seguinte, ele devorou-a. Levou-a na barriga. Eu fiquei. Juro que me parece que ainda a ouço rir...

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Julgamento

Morte aos tristes, que estragam a felicidade! Morte aos que riem, que não deixam sofrer! Morte aos amigos que apunhalam pelas costas e aos homens sem honra que não cumprem promessas! Morte aos amantes que não sabem amar; aos que pedem confiança quando falham sempre; morte aos estúpidos que confiam neles! Morte aos fortes, que nada sentem; morte aos fracos, que espasmam de dor! Morte às ladies na cama e putas na mesa; aos esteróides do porno e aos porcos fascizóides! Morte à mulher que não se masturba por ser errado e ao homem que a bate a pensar numa com outra ao lado! Morte aos filhos da puta que a mãe não tem culpa senão de os parir! Morte aos partidos e aos que não tomam partido!
Morte aos homens de bens e aos males dos homens! Morte ao amor que se finge verdade; morte aos traumas das relações que levam uns a pagar o erro de outros! Morte àquela noite em que se uniram os carrascos; morte àquela tarde em que se conheceram os santos que uniram carrascos! Morte a mim, que me pensei; morte a ti, que me sonhaste!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Duelo

Tu ainda não sabes. Não sabes porque nos forjaram, porque nos uniram. Pensas: o amanhã é demasiado grande e pode tragar-me. Esqueces que a minha mão está aqui. Afundas-te em ti. Afogas-te no medo cruel que te aprisiona. Falas-me em partir, esboças um vago regresso. Não entendes que uma partida é sempre um adeus, mesmo que haja um regresso. Vago, ainda por cima.
Peço-te: se partes, leva-me contigo. Passam dias e passam anos, até que cedes e aceitas levar-me.
E agora, deitado na minha cama, penso que talvez partas pela calada da noite, sem me avisar. Sou eu que me deixo ser tragado pelo medo, sou eu quem enlouquece na minha própria prisão.
Quando amanhecer, já traçámos o nosso destino. Um combate ao nascer do sol, com a luz que nos cega. Direi: não me queres levar. Dirás: sempre soubeste que não te queria levar, foste tu quem insistiu.
Não entendemos. Estamos aprisionados nestas formas, cegos e embrutecidos. Ergues a arma. Eu aponto a minha. Qual de nós o mais veloz?

Horas mais tarde, alguém encontrará dois corpos. No meu, este texto. No teu, dois bilhetes de avião.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Mensagem para os senhores da ASAE:

"Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando."

-Tabacaria, Álvaro de Campos

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Parvónia

A nova publicidade da Media Markt ofende os meus ideais e também pessoas próximas. Não me refiro à questão do escuteiro, que já teve direito a uma petição. Mas espreitem aqui, que está lá tudo.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Só $15.000?!!!












Mr. jazzy_blues

WANTED FOR THE INTENSE FRENCH-KISSING OF A RUSSIAN TEDDY BEAR

$15.000



quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A Cave

Foi quando pousaste a mão no meu rosto. Alisaste as rugas cansadas do fogo dos alambiques e do labirinto das retortas. Sorriste, como não me recordava de te ver sorrir. Tentei endireitar-me e descobri que não era possível: os anos que passei fechado neste laboratório de improviso acumularam-se em camadas até formar uma corcunda. Quis sorrir-te, mas os lábios estavam presos de tão crispados e saiu-me uma estranha expressão, incompreensível. Não para ti, claro. Agradeceste-me a tentativa de sorriso pousando teus lábios nos meus. Estavas mais nova, subitamente. Não eras mais a mulher cinzenta que descia à cave para me trazer o almoço. Estavas de novo brilhante, o cabelo mais leve do que o ar e o vestido rodando em redor do teu corpo, como que impedido pelo medo de conspurcar a tua pele.
"Já descobriste?", julguei ouvir-te murmurar.
"É impossível... Quanto mais pesquiso mais me convenço de que a resposta não está aqui."
Tocaste-me no ombro. Julguei ter adormecido sem dar conta, porque quando me virei já não estavas lá. Julguei ter adormecido porque a velhice prega destas partidas.
Levantei-me a custo, o corpo separando-se da cadeira, tentando recordar-se qual a sua forma independentemente dela. Arrastei os pés, devagar. Ao primeiro passo, um ataque de tosse que quase me derrubou. Envenenamento por mercúrio, dizem os médicos. Mas mantive o equilíbrio, a custo, dirigindo-me às escadas. Demorei talvez uma hora para subir os degraus, entre ataques de tosse e ataques de asma.
Quando, por fim, cheguei ao corredor, chamei por ti. Três vezes: a primeira soou como um ronco inaudível; a segunda um grito ridículo, com a voz falhando, como se a mudança de voz da puberdade me revisitasse; a terceira, por fim, poderosa, vibrante e, contudo, carinhosa. Não escutei a tua resposta. Vagueei pela casa, ansioso de reencontrar o teu cabelo esvoaçante, o teu vestido de ondas e teus lábios de cereja desenhando um sorriso no teu rosto de menina.
No chão da cozinha, junto ao tabuleiro com o almoço derramado, jazia sem vida o corpo cinzento de uma mulher.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Se eu morrer hoje

Se eu hoje morrer, é só mais um dia. Vais lavar o teu rosto pela manhã e traçar o contorno dos teus olhos a preto, não por eu ter morrido, mas porque sempre tiveste os olhos contornados a preto. Não será luto, o teu acordar. Será um espreguiçar de ontem, indiferente ao facto de que o meu rosto frio hoje não sentiu a luz.

É certo que irás rir durante a manhã. É igualmente certo que à hora de almoço atenderás uma chamada dizendo "Ele morreu." Talvez te estrague a tarde. Sim, creio que sem dúvida te estragará a tarde em que tinhas planeado rir num café, falando de mim e de como ontem te fiz rir. Tinhas planeado tudo isto, sem querer, porque hoje é só mais um dia. Sinto-me culpado por antecipação.

O contorno preto dos teus olhos vai-te deslizar pela face. Vais pensar "Devia ter-lhe dito. Devia ter-lhe dado aquele abraço e aquele beijo, porque agora não me recordo qual foi o último abraço nem o sabor do seu último beijo."

Vais pensar "E agora?" Não gosto que vás pensar nisso, porque para mim então já não haverá nenhum "agora". Se eu morrer hoje, é só mais um dia. Talvez me enterres mais rápido que o coveiro. Ou talvez procures outros braços em que me enterrar, já podre a carne mas persistente a memória.

Se eu morresse hoje... Queria bombos e uma gaita de foles e champanhe para todos. Queria todas as tuas fotografias no meu caixão, que deveria ser vermelho. Queria ainda um livro e uma folha com palavras tuas, com o teu perfume.

Não morro hoje. É cedo.

Tenho um livro para escrever e a tua alma para salvar. Talvez falhe em ambos, mas não sem tentar. Se eu não morrer hoje, talvez o dia seja diferente.

Génese

Tive a particularidade de passar as manhãs da minha infância numa biblioteca municipal, enfiada num velho convento convertido em edifício dos Paços do Concelho, onde a minha mãe era funcionária. Assim, enquanto a minha mãe trabalhava no andar de cima e eu esperava pelas aulas da tarde, lia os livros que enchiam as prateleiras do andar de baixo, nem sempre para a minha idade.
Lia banda desenhada, policiais, aventuras... Sabia onde estava cada livro, melhor que as bibliotecárias, e passava parte desse tempo a colocar no devido lugar aqueles que alguém pusera na estante errada.
Desde os cinco anos que queria poder contar as histórias que me assaltavam o espírito, mais propenso a sonhos que a trepar árvores. Então escrevia histórias de dez, vinte páginas, geralmente violentas e assustadoras. Os meus pais preocupavam-se com a ideia de que o seu primogénito pudesse ter inclinações violentas. Estavam enganados.
O que me interessava era o poder de brincar com as personagens, de as conduzir, de me realizar nelas. Depois, a capacidade de divertir quem lia, de os entreter e, por fim, de lhes proporcionar uma experiência mais ou menos gratificante.
Hoje, digo: 'Sou escritor.' E há quem ria. Sou escritor porque, primeiro que tudo, sou um leitor que escreve o que gostaria de ler. Sou leitor porque sou um escritor que lê o que gostaria de pôr por escrito.
Sou escritor, acima de tudo, porque em criança boa parte dos meus amigos eram páginas encadernadas, que me deram a conhecer o mundo que vive dentro de nós e que, a bem dizer, talvez não seja menos real do que este em que nos movemos.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Já não há mais histórias

Deixaram-me sem histórias. É verdade. Procurei debaixo do sofá, dentro dos livros e até levantei o tapete (e isto é estúpido, porque todos sabem que uma história não cabe debaixo do tapete). Nem uma. No bolso só tinha um lenço de papel amarrotado e felizmente ainda por usar. Histórias, nem uma.

Foi um golpe baixo, esse de me deixar sem histórias. Tentei escrever a minha vida, mas apercebi-me que também não tinha história. Era assim como que um imenso disparate, ou melhor, uma imensidade de disparates muito bem colados.

"Para onde raio foram as histórias?", quis saber, com o punho cerrado batendo no balcão dos Ministros.

"Ah, bem sabe, já ninguém quer saber de histórias, já ninguém acredita..."

"Que lhes fizeram, então?!"

"Promulgámos uma lei a dizer que não há mais histórias. Lamento, nada a fazer."

Nada a fazer, portanto. Vou dedicar-me à colagens.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Cronologias

Dizem que ser lembrado é a chave para a imortalidade.

Para se destruir o imortal, a chave é então o esquecimento?

. . .


(o dia que passou é inalterável.)

recorda-te de amanhã

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Natália Correia no país do Salazar

Hoje, enquanto tomava a bica no Café do Arsénio (uma tasca em frente à Sé Velha de Coimbra), apercebi-me dum poema de Natália Correia colado a uma parede, que já há muito me lembro de ver ali, mas que jamais me dera ao trabalho de ler.


Foi-me preciso descobrir que:

a lógica é a ciência de gerir os rendimentos da estupidez;
os políticos não são inteiramente galinhas porque cacarejam e não põem ovos;
as pastas dos executivos levam dentro aranhas para urdirem as teias que nos imobilizam;
os militantes de todos os partidos têm pele de camisas enforcadas;
a família é um cardume de piranhas ao redor da carcaça de uma vaca sagrada;
a sociologia é uma completa falta de humor perante a decadência;
os gestores destilam um suor frio que nos constipa;
as nações içam as bandeiras para porem o falo a pino e masturbarem-se;
as esquerdas e as direitas resultam do pacto de não inverterem os papéis;
o socialismo é um estratagema para negar aos exploradores o direito ao desaparecimento;
o liberalismo é uma manha do Estado para forjar algemas com a liberdade;
os intelectuais são uma chatice com que o Criador não contava;
sendo a educação a providência dos imbecis que são em maior número, o mundo está
imbecilizado pela educação;
o sistema é a creche da debilidade mental e a vala comum da inteligência;
a economia é adquirir-se o vício do fumo porque se comprou um isqueiro;
dos vencidos não reza a história porque se renderam à razão,

para concluir que:

chegou a hora romântica dos deuses nos pedirem a desobediência.
Faço-lhes a vontade.
A partir de hoje, se alguém me quiser encontrar, procure-me entre ­o riso e a paixão.

Natália Correia - 10 de Janeiro de 1983



Apercebi-me então que fazem hoje 25 anos sobre a escrita deste poema. A Poeta Natália Correia deixou-nos há quase quinze anos (que se completam a 16 de Março) e o país (perdoem a minúscula) continua na mesma. As críticas continuam actuais. A lógica é a mesma; os políticos e os executivos também.
Mas que se poderia esperar, quando os deuses nos pedem desobediência e escolhemos para nos representar como maior de entre nós o chicote e a mão de ferro do Sr. Salazar? Pelos vistos precisamos de mais do que Natália para que possamos tirar as mesmas conclusões...



P.S.: Relativamente ao uso da palavra "Poeta" ao invés de "Poetisa", trata-se da única coisa que determinada professora universitária (profundamente feminista e conservadoramente avant-garde) conseguiu meter-me na cabeça... É que as "Poetisas" eram antes da emancipação da mulher; era quando as mulheres escreviam poemas fechadas no seu quarto, muito doentes e recatadas. É, aliás, um termo com o seu quê de pejorativo. Por essa razão, porque a Arte Poética não merece ser subdividida, utilizo o substantivo "Poeta" seja para quem for.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Ruínas

Quando chegámos à cidade, já esta estava em ruínas. Do cimo da colina, parados na estrada poeirenta com a minha mão enlaçando a tua, podíamos observar o fumo negro que subia das casas desfeitas.
'Quando foi?', perguntaste.
'Penso que dormíamos.'
Ficámos em silêncio, contemplando. Puxaste-me até um rochedo e sentámo-nos, difusos na bizarra mistura das cinzas e da luz do sol que surgia então no horizonte. Beijei-te o rosto e tu os meus lábios. Fizemos amor: duas silhuetas em contraste com a luz dos incêndios. Quando terminámos, deixámo-nos nus, deitados na pedra. Eu olhava os teus seios, erguendo-se contra a luz.
'Esta noite sonhei que incendiava a cidade.'
'Sim, bem sei. Eu também.'
Enlacei a tua cintura, as nossas peles confortáveis no contacto.
'Morreram todos?'
'Sem dúvida.'
Olhaste-me. Em contra-luz, não conseguia ver os teus olhos. Mas sentia-lhes o brilho amargo.
'É aqui que nos separamos.', disseste.
'Por um sonho?'
'O teu sonho. Levaste-me nele. Vê o que aconteceu.'
Virei o rosto para o céu. Não te vi ergueres-te. Não vi enquanto cobrias o teu corpo ondulante com a prisão da tua roupa. Ouvi apenas o teu balbuciar 'Adeus...' O som dos teus passos perdeu-se por entre as nuvens e a cinza.
Quando me ergui, era já noite e estava só, abandonado ao meu sonho. No vale, uma cidade em ruínas.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Cara Metade

Dói-me o peito. Tu sabes.
Espero uma resposta. Não vem. Espero um pouco mais. Já foi. Mas era outro o caminho e eu não vi e não fui.

É assim como se fosse a morte a bater à janela e eu a fingir que não estou em casa. É um pouco como isso, só que não sei como isso é. Sei, contudo, que me recorda uma tal situação. Porque quando julgo que é uma corda que trazes na mão, de laço já feito, digo-te: "Vou ali e já venho."

Bem sei que dantes (quando foi?) não era assim (dizes que foi ontem, eu digo que foi noutra era).
Mas tinham-me então crescido os dentes e tinham fome. Pediram o mundo e eu não sabia que mundo lhes dar. Pensei: havia um restaurante naquela rua. E esqueci-me do néctar que tinhas para mim.

Quando os dentes se foram (mas a fome ficou), já o teu néctar secara (ou fechaste a fonte?).

Por isso hoje, mesmo não sendo nada disso por não saber o que isso é, sou um homem com dores no peito, gemendo de fome e fingindo não ver a morte que bate, insistente, à janela.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Canto Para Minha Morte - Raul Seixas

Uma extraordinária música de Raúl seixas, o pai do rock brasileiro...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Despertar

Foi ontem, um pouco antes de adormeceres. Eu, como é óbvio, já dormia. Puxaste novamente a colcha sobre o teu corpo. Eu deixei, mas revirei-me na cama e agarrei-me a ti. Estava a dormir, bem sabes, e a cama era estreita. Afastaste o teu rosto do meu, incapaz de suportar o bafo alcoolizado da nossa discussão que, sorrateiro, me escapava ainda dos lábios entreabertos. Eu sei que dormia: penso que o sabes também. Porém no afastar do teu rosto, saiu-me uma palavra por entre o bafo. Era o teu nome. Esperaste um pouco, imóvel, na escuridão.
"O que foi?"
Não respondi. É preciso que entendas: estava a dormir. Como poderia eu responder? Agora que estou acordado, sei qual era a resposta. Era simples. Deveria tê-la dito ontem, quando afastaste o teu rosto do meu. Mas dormia, bem sabes.
Quando acordei e te abracei e te falei da noite que terminara por fim e tentei livrar-me do meu horrível hálito, tu nada disseste sobre o que sucedera durante o meu sono. Olhaste-me e nada mais. Fizemos amor triste e sem vontade. O teu corpo pouco se moveu. Eu quis chorar e achei-me patético. Deitei-me no teu seio; a tua mão no meu cabelo.
E respondi-te, por fim.