sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Conversas

Falámos de comboios, falámos de estações. Falámos do horror da partida e da confusão da chegada. Falámos de muitas coisas. Eu disse-te a minha honestidade e temi que dizê-la a tornasse mentira a teus olhos, esses olhos perante os quais não quero falhar. Tu disseste quem eu sou e estavas só a falar de ti.
Falámos das ruas, as palmilhadas e todas aquelas por percorrer. Falámos de existir; falámos de pensar; falámos do ódio dos homens e do riso das crianças. Falámos de gatos e falámos de cães. Falámos de deuses e negámos demónios, subitamente apagados dos seus lares de fogo. Eu disse-te os meus medos e como os afogo. Tu nada disseste, porque bastaria um também.
Falámos de não crer e crer outra vez. Falámos de nós como portas abertas dando para quartos há muito conhecidos. Eu disse-te o teu rosto; tu sorriste no meu. Já não falávamos no fim e nos nossos olhares habitavam todas as conversas do mundo.
Falámos de tanta coisa e há tanta por falar. Perguntamo-nos como iniciar tantas conversas, como principiar esse tempo em que sou tu e tu serás eu. A resposta é então clara: começa assim...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Complexo de Fénix

Eu deveria estar morto, bem sei. O golpe foi certeiro e correu sangue. Muito sangue. A autópsia revelou claramente: estava morto e bem morto, tão morto como todos os vivos hão de estar.
O velório foi rápido e os poucos presentes choraram um pouco, como fica bem nestas coisas. Também houve presenças indesejadas, como é normal. Uma ou outra pessoa, que me pergunto se terão ido por remorso, consideração, ou mesmo para verificar apenas até que ponto era real a minha morte. Sem pulso nem respiração e com uns fiapos de algodão a espreitar por entre os lábios roxos. Sim, podiam estar descansados, eu estava morto.
O problema, claro está, foi o enterro. O coveiro, coitado, roía uma maçã encostado à enxada com que me abrira o sepulcro. A família mantinha-se em silêncio, no luto arrogante dos seus fatos pretos, com os olhos nada inchados escondidos por detrás dos óculos escuros. A minha irmã tremia o lábio no seu choro compulsivo, com os olhos arregalados postados no caixão que chegava em solene procissão, como se de facto a minha morte fosse mais importante por ir numa caixa de madeira envernizada. Minha mãe não chorava, por estar seca. Também ela fitava o caixão.
Então pousaram-me, para que não descesse aos vermes sem meia dúzia de preces do padre. E eu morto, muito morto, observando os meus homicidas carpindo como crocodilos. Lembro-me que, mesmo sem vida, pensei: isso dos crocodilos chorarem quando comem as vítimas é um mito, isso é coisa de gente.
E levantei-me. Sacudi o terno azul, desbotado pelo sol. Foi motivo de grande espanto, um morto tão morto, já aberto e já cosido, erguer-se assim tão jovial. Sorri um pouco e acenei a todos, até aos crocodilos. Tirei o casaco e desarranjei a camisa. Cheguei-me a uma morta de passagem e fiz-lhe uma vénia, perguntando:
- Se fosses ave, qual gostarias de ser?

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Vingança

Pode uma traição inventada ferir tanto como uma real? Mesmo depois de revelada a sua falsidade?


Eu não sou cruel. Mas quando me ferem, é o mesmo que irritar um ninho de abelhas... O facto de eu ser meigo e carinhoso leva as pessoas a descuidar o facto de que sou orgulhoso e inteligente. Acontece que então me torno mau. Deixo-me possuir por uma maldade requintada, retorcida. A vingança é algo terrível, mas principalmente para quem é vítima dela. Porque não há piedade para a vítima de uma vingança. São vítimas aqueles que uma vez foram culpados.


Entenda-se: não sou vingativo. Acredito no perdão. Mas e quando não querem ser perdoados? Quando erram e teimam, do alto da sua arrogância, que não têm remorsos? Então eu sou outro. E esse outro, lamento dizê-lo, é a própria Vingança... Todos os meus valores se perdem: torno-me capaz de mentir, de ferir, de tirar gozo do sofrimento alheio. Nunca o faço sem uma lição, claro. É preciso educar os espíritos reles. Não sou eu quem o diz. Eu não creio em nada disto. É o outro. Ele é capaz de semear sementes de destruição ao longo de dias, meses ou anos e uni-los todos num instante, como uma enorme armadilha. Ele é cruel.


Ele só conhece dois princípios: "Olho por olho, dente por dente" e "Quem semeia ventos colhe tempestades". É o que basta para o temer. Não podia ter melhor aliado.

O Intruso

E então ela foi-se. Há muito que discutíamos sobre o intruso que, a pretexto de suposta amizade, se instalara naquele cantinho da casa. Eu aborrecia-me porque ele lhe olhava as pernas, lhe gabava o peito. Aborrecia-me o lixo que ele espalhava pelo chão e que eu tinha de recolher, em silêncio, para evitar novas discussões. Ela fez dele bicho de estimação e passava-lhe a mão atrás das orelhas. Isto incomodava-me, como é óbvio. Ele entrara na casa prometendo não incomodar, prometendo não tocar nela, não olhar para ela.
Mas os dias passaram e eu dei por mim sentado no sofá, sozinho, enquanto eles brincavam pela casa. Eu dirigi-me a ela e pedi-lhe que entendesse que ele prometera ficar apenas no cantinho daquela casa. Ela pediu-me confiança. Discutimos. Eu aceitei.
No dia seguinte, ele devorou-a. Levou-a na barriga. Eu fiquei. Juro que me parece que ainda a ouço rir...

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Julgamento

Morte aos tristes, que estragam a felicidade! Morte aos que riem, que não deixam sofrer! Morte aos amigos que apunhalam pelas costas e aos homens sem honra que não cumprem promessas! Morte aos amantes que não sabem amar; aos que pedem confiança quando falham sempre; morte aos estúpidos que confiam neles! Morte aos fortes, que nada sentem; morte aos fracos, que espasmam de dor! Morte às ladies na cama e putas na mesa; aos esteróides do porno e aos porcos fascizóides! Morte à mulher que não se masturba por ser errado e ao homem que a bate a pensar numa com outra ao lado! Morte aos filhos da puta que a mãe não tem culpa senão de os parir! Morte aos partidos e aos que não tomam partido!
Morte aos homens de bens e aos males dos homens! Morte ao amor que se finge verdade; morte aos traumas das relações que levam uns a pagar o erro de outros! Morte àquela noite em que se uniram os carrascos; morte àquela tarde em que se conheceram os santos que uniram carrascos! Morte a mim, que me pensei; morte a ti, que me sonhaste!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Duelo

Tu ainda não sabes. Não sabes porque nos forjaram, porque nos uniram. Pensas: o amanhã é demasiado grande e pode tragar-me. Esqueces que a minha mão está aqui. Afundas-te em ti. Afogas-te no medo cruel que te aprisiona. Falas-me em partir, esboças um vago regresso. Não entendes que uma partida é sempre um adeus, mesmo que haja um regresso. Vago, ainda por cima.
Peço-te: se partes, leva-me contigo. Passam dias e passam anos, até que cedes e aceitas levar-me.
E agora, deitado na minha cama, penso que talvez partas pela calada da noite, sem me avisar. Sou eu que me deixo ser tragado pelo medo, sou eu quem enlouquece na minha própria prisão.
Quando amanhecer, já traçámos o nosso destino. Um combate ao nascer do sol, com a luz que nos cega. Direi: não me queres levar. Dirás: sempre soubeste que não te queria levar, foste tu quem insistiu.
Não entendemos. Estamos aprisionados nestas formas, cegos e embrutecidos. Ergues a arma. Eu aponto a minha. Qual de nós o mais veloz?

Horas mais tarde, alguém encontrará dois corpos. No meu, este texto. No teu, dois bilhetes de avião.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Mensagem para os senhores da ASAE:

"Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando."

-Tabacaria, Álvaro de Campos