quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A Cave

Foi quando pousaste a mão no meu rosto. Alisaste as rugas cansadas do fogo dos alambiques e do labirinto das retortas. Sorriste, como não me recordava de te ver sorrir. Tentei endireitar-me e descobri que não era possível: os anos que passei fechado neste laboratório de improviso acumularam-se em camadas até formar uma corcunda. Quis sorrir-te, mas os lábios estavam presos de tão crispados e saiu-me uma estranha expressão, incompreensível. Não para ti, claro. Agradeceste-me a tentativa de sorriso pousando teus lábios nos meus. Estavas mais nova, subitamente. Não eras mais a mulher cinzenta que descia à cave para me trazer o almoço. Estavas de novo brilhante, o cabelo mais leve do que o ar e o vestido rodando em redor do teu corpo, como que impedido pelo medo de conspurcar a tua pele.
"Já descobriste?", julguei ouvir-te murmurar.
"É impossível... Quanto mais pesquiso mais me convenço de que a resposta não está aqui."
Tocaste-me no ombro. Julguei ter adormecido sem dar conta, porque quando me virei já não estavas lá. Julguei ter adormecido porque a velhice prega destas partidas.
Levantei-me a custo, o corpo separando-se da cadeira, tentando recordar-se qual a sua forma independentemente dela. Arrastei os pés, devagar. Ao primeiro passo, um ataque de tosse que quase me derrubou. Envenenamento por mercúrio, dizem os médicos. Mas mantive o equilíbrio, a custo, dirigindo-me às escadas. Demorei talvez uma hora para subir os degraus, entre ataques de tosse e ataques de asma.
Quando, por fim, cheguei ao corredor, chamei por ti. Três vezes: a primeira soou como um ronco inaudível; a segunda um grito ridículo, com a voz falhando, como se a mudança de voz da puberdade me revisitasse; a terceira, por fim, poderosa, vibrante e, contudo, carinhosa. Não escutei a tua resposta. Vagueei pela casa, ansioso de reencontrar o teu cabelo esvoaçante, o teu vestido de ondas e teus lábios de cereja desenhando um sorriso no teu rosto de menina.
No chão da cozinha, junto ao tabuleiro com o almoço derramado, jazia sem vida o corpo cinzento de uma mulher.

1 comentário:

Anónimo disse...

li até escreveres: (...)laboratório de improviso (...) não pude ler mais.
(sei tão bem o que é viver num laboratório de improviso que..)
depois venho ler, num dia de sol, hoje o nevoeiro está muito denso..