quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Natália Correia no país do Salazar

Hoje, enquanto tomava a bica no Café do Arsénio (uma tasca em frente à Sé Velha de Coimbra), apercebi-me dum poema de Natália Correia colado a uma parede, que já há muito me lembro de ver ali, mas que jamais me dera ao trabalho de ler.


Foi-me preciso descobrir que:

a lógica é a ciência de gerir os rendimentos da estupidez;
os políticos não são inteiramente galinhas porque cacarejam e não põem ovos;
as pastas dos executivos levam dentro aranhas para urdirem as teias que nos imobilizam;
os militantes de todos os partidos têm pele de camisas enforcadas;
a família é um cardume de piranhas ao redor da carcaça de uma vaca sagrada;
a sociologia é uma completa falta de humor perante a decadência;
os gestores destilam um suor frio que nos constipa;
as nações içam as bandeiras para porem o falo a pino e masturbarem-se;
as esquerdas e as direitas resultam do pacto de não inverterem os papéis;
o socialismo é um estratagema para negar aos exploradores o direito ao desaparecimento;
o liberalismo é uma manha do Estado para forjar algemas com a liberdade;
os intelectuais são uma chatice com que o Criador não contava;
sendo a educação a providência dos imbecis que são em maior número, o mundo está
imbecilizado pela educação;
o sistema é a creche da debilidade mental e a vala comum da inteligência;
a economia é adquirir-se o vício do fumo porque se comprou um isqueiro;
dos vencidos não reza a história porque se renderam à razão,

para concluir que:

chegou a hora romântica dos deuses nos pedirem a desobediência.
Faço-lhes a vontade.
A partir de hoje, se alguém me quiser encontrar, procure-me entre ­o riso e a paixão.

Natália Correia - 10 de Janeiro de 1983



Apercebi-me então que fazem hoje 25 anos sobre a escrita deste poema. A Poeta Natália Correia deixou-nos há quase quinze anos (que se completam a 16 de Março) e o país (perdoem a minúscula) continua na mesma. As críticas continuam actuais. A lógica é a mesma; os políticos e os executivos também.
Mas que se poderia esperar, quando os deuses nos pedem desobediência e escolhemos para nos representar como maior de entre nós o chicote e a mão de ferro do Sr. Salazar? Pelos vistos precisamos de mais do que Natália para que possamos tirar as mesmas conclusões...



P.S.: Relativamente ao uso da palavra "Poeta" ao invés de "Poetisa", trata-se da única coisa que determinada professora universitária (profundamente feminista e conservadoramente avant-garde) conseguiu meter-me na cabeça... É que as "Poetisas" eram antes da emancipação da mulher; era quando as mulheres escreviam poemas fechadas no seu quarto, muito doentes e recatadas. É, aliás, um termo com o seu quê de pejorativo. Por essa razão, porque a Arte Poética não merece ser subdividida, utilizo o substantivo "Poeta" seja para quem for.

2 comentários:

nonsense disse...

O que ocorre...
(apenas)

http://www.youtube.com/watch?v=YA2h9PrIUxs

Anónimo disse...

não conhecia este poema da natália(eu nunca ou quase nunca utilizo maíusculas) e fiquei simplesmente extasiada não só pela contemporaneidade como bem afirmas, mas porque, lendo-o hoje, me tocou particularmente.
se me permites vou conduzir os meus colegas da blogosfera a virem aqui lê-lo porque acho que todos o devíamos fazer.
obrigada
casamia