sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Complexo de Fénix

Eu deveria estar morto, bem sei. O golpe foi certeiro e correu sangue. Muito sangue. A autópsia revelou claramente: estava morto e bem morto, tão morto como todos os vivos hão de estar.
O velório foi rápido e os poucos presentes choraram um pouco, como fica bem nestas coisas. Também houve presenças indesejadas, como é normal. Uma ou outra pessoa, que me pergunto se terão ido por remorso, consideração, ou mesmo para verificar apenas até que ponto era real a minha morte. Sem pulso nem respiração e com uns fiapos de algodão a espreitar por entre os lábios roxos. Sim, podiam estar descansados, eu estava morto.
O problema, claro está, foi o enterro. O coveiro, coitado, roía uma maçã encostado à enxada com que me abrira o sepulcro. A família mantinha-se em silêncio, no luto arrogante dos seus fatos pretos, com os olhos nada inchados escondidos por detrás dos óculos escuros. A minha irmã tremia o lábio no seu choro compulsivo, com os olhos arregalados postados no caixão que chegava em solene procissão, como se de facto a minha morte fosse mais importante por ir numa caixa de madeira envernizada. Minha mãe não chorava, por estar seca. Também ela fitava o caixão.
Então pousaram-me, para que não descesse aos vermes sem meia dúzia de preces do padre. E eu morto, muito morto, observando os meus homicidas carpindo como crocodilos. Lembro-me que, mesmo sem vida, pensei: isso dos crocodilos chorarem quando comem as vítimas é um mito, isso é coisa de gente.
E levantei-me. Sacudi o terno azul, desbotado pelo sol. Foi motivo de grande espanto, um morto tão morto, já aberto e já cosido, erguer-se assim tão jovial. Sorri um pouco e acenei a todos, até aos crocodilos. Tirei o casaco e desarranjei a camisa. Cheguei-me a uma morta de passagem e fiz-lhe uma vénia, perguntando:
- Se fosses ave, qual gostarias de ser?

6 comentários:

Anónimo disse...

dois aspectos:
o real
e o outro real

o real: funerais são deprimentes, absurdos, patéticos, e toda a adjectivação que encontres nesta senda..ocidentalismos! vestamo-nos de branco ou dancemos!

o outro real: ainda bem que desarranjaste a camisa, já estava a ficar sufocada!

quanto à pergunta, nunca até hoje me consegui decidir entre a paixão pelo pardal e a paixão pelo condor, por isso devolvo, não posso ser um bocadinho das duas?

Igor disse...

Cassamia

acho que se pode ser o que se quiser, basta querer. e peço desculpa pelo sufoco, a morte tem destas coisas: metem-nos camisa e gravata e já nem sabemos como respirar. enfim, eu escolho ser fénix.

Anónimo disse...

eu pexebi jazzy :))

Jonas disse...

-Pêga!, disse ela!

Igor disse...

Jonas

Essa foi boa. Mas dessas já estou farto... Porque tanto o dizem com acento como sem acento...

Jonas disse...

E então?
Sem acento, a gente pega mesmo...nas asinhas, nas peninhas...!
Com acento...olha...não sei que te diga...mas que são como as moscas da praça pública (inúmeras), lá isso são!
:)